quinta-feira, 18 de maio de 2017

[No Umbral] [Conto] - O segredo das cerejeiras

Saudações, visitantes do Umbral, como estão? 

Preparados para me acompanhar em mais uma viagem a um mundo de delírios?

Caso você tenha se perdido de seu caminho e de repente veio parar aqui, não se acanhe, sou apenas um guia entre diversas paisagens (devo dizer deveras lúgubres). 

Me chamo Orfeu Brocco, vivo no alto de um morro na cinzenta cidade de São Paulo, contudo uma vez por mês tomo as chaves de acesso (concedidas em algum momento que o tempo e eu esquecemos) a um mundo à parte, onde as névoas saúdam os convidados e apontam por diversos caminhos ligados a infinitas histórias.

Neste mês, tenho o prazer de anunciar o resultado de uma tímida campanha feita no mês passado, durante a exposição da história O Rei Rato: Quem quer ser um personagem?”.

Sinceramente, devo dizer que esperava mais adesão de pessoas, mas mesmo que somente uma pessoa tenha participado efetivamente foi realmente um prazer contar com a pesquisa, a dedicação e o carinho que houve com a proposta por parte da Lucy Santos.

Portanto, Lucy, caminhe até a porta selada com o seu nome, abra e entre, vislumbre uma realidade alternativa e tente não se horrorizar! Quanto a nossos outros acompanhantes, peço que se sentem, aproveitem o chá e reflitam sobre o valor da sanidade.




O Segredo das Cerejeiras

(por Orfeu Brocco)


"RETRATO"

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles

A bebê dormia; tão serena e doce, contrastava com a imagem refletida de Lucy, preocupada e abatida. Enquanto penteava as madeixas escuras, observou pela milésima vez em sua vida a cicatriz no lado esquerdo da cabeça. Aquilo representava um mistério e a parcialidade de uma lembrança. Naquele instante, recebeu através do What’s App uma mensagem do marido:

“Hoje é o seu dia de liberdade, estou chegando, meu amor. Se arrume e me espere, ficarei com a nenê, já sabe o que fará hoje?”

Lucy não sabia. Após a maternidade, os raros momentos de extrema liberdade são acompanhados por uma terrível apatia em não saber o que fazer, tanto tempo gasto dedicando-se a uma só pessoa às vezes podem roubar também ideias e sonhos. Naquele dia, estava sentindo-se tremendamente existencialista. Seu telefone tocou:

— Oi, mãe! — em um misto de felicidade e surpresa, ouviu a matriarca fazer as típicas perguntas sobre o dia a dia e sobre a amada netinha.

— Como o tempo passa... há apenas 16 anos, que para mim parecem 16 dias, você ainda era uma garotinha levada, agora você tem a sua garotinha e eu tenho apenas lembranças. Falando em lembranças, sabe que dia é hoje? — Lucy negou e até forçou a cabeça, enquanto acariciava a cicatriz. 

— Dia 02 de maio de 2017 — anunciou a mãe — O dia de sua última fuga de nossa casa do interior há mais de 18 anos.

— O dia do qual eu não lembro nada e ainda ganhei essa cicatriz! Duplamente sortuda! — ela sorriu ironicamente. — Hoje é dia de sair e fazer algo, o César ficará tomando conta da nenê!

— Então vá! Vá, meu amor! Você merece, vá ver uma amiga ou um lugar bonito, aproveite seu descanso!

Lucy foi, mas optou por ver algum lugar bonito, não queria ver alguma amiga nesse dia, só teria coisas a contar sobre a pequena Eliane e sabia como poderia ser enfadonho. Porém, segundo outras amigas, todas mães de longa data, logo a nenê cresceria e as coisas amenizariam. 

Sentou-se em um banco no Parque do Carmo enquanto observava as pessoas e as cerejeiras. Tomou em mãos um livro que ganhara de uma amiga do Rio de Janeiro, tratava-se de um romance de terror de um escritor não conhecido que tentava ganhar alguma popularidade.

Ouviu passos lentos e largos que a tiraram da leitura e a trouxeram de volta ao bosque, mais conhecido como Bosque da Leitura. Ergueu o olhar e vislumbrou a figura de um homem de idade avançada, apesar da sua longevidade possuía uma postura ereta, olhos escuros que contrastavam com os cabelos brancos e a pele cor de amêndoas, vestia um belo terno chinês cinza. Como quem anunciava a chegada, meneou a cabeça quando viu os olhos de Lucy se erguerem.

— Com licença — ela afastou-se e ele se sentou. Alguma coisa naquele velhinho fez com que abandonasse o livro e se virasse para ele. — Não se preocupe comigo, pode continuar a sua leitura, quero apenas observar as cerejeiras.

— São lindas, não? — Lucy guardou o livro na bolsa. O velhinho curiosamente observou e pensou que talvez não seria deixado em paz.



— Sim, por conta de sua simplicidade as cerejeiras nunca estão sós. Será que isso se aplica a algumas pessoas? Espero que sim — disse ele e sorriu de modo maroto.

Temendo ser incômoda, a mulher de cabelos pretos e olhar perdido fez menção de se levantar, mas o olhar do oriental parecia pedir que ficasse. De uma sacola ele retirou um radiozinho portátil, já antigo, e perguntou se a incomodaria. Diante da negativa, ele sorriu e sintonizou uma rádio AM qualquer. Uma voz suave começou a cantar após uma ligeira introdução.

“Picture yourself in a boat on a river
With tangerine trees and marmalade skies
Somebody calls you, you answer quite slowly
A girl with kaleidoscope eyes “ (1)

— Nossa, que boa surpresa, logo essa música! — Lucy sorriu.

— Parece você essa música, uma garota com olhos de caleidoscópio. Apesar da negritude que, agora ao fitar, me trazem uma certeza e uma dúvida.

— Bem... eu também sou Lucy, de fato. Que certeza trazem meus olhos?

Levemente o vento soprou e derrubou algumas pétalas das cerejeiras sobre eles que pareciam já se conhecer. Ou ele parecia saber algo sobre ela; poucas vezes na vida encontramos pessoas que nos trazem essa incrível sensação tão frágil, como se estivéssemos frente a alguém que enxerga nosso interior.

— A certeza é que faz uns 200 ou 300 anos que não vejo um de vocês. A dúvida é se você realmente é quem diz ser — o dizer fez com que algo tremesse dentro dela.

— Filosoficamente falando, ninguém é quem diz ser — ponderou a mulher orgulhosa de sua perspicácia.

— Você tem razão — concordou ele e ambos ficaram se olhando por um longo tempo em silêncio. Ela pensou que a constatação sobre 200 ou 300 anos devia ser uma alegoria para expressar algo acontecido há muito tempo. 

— Tu tens a impressão de que já nos conhecemos, não? — o rompimento do silêncio veio com uma pergunta quase afirmativa. Ela assentiu. — Eu sou Huang, basicamente não sou de lugar nenhum, mas estive perambulando por todo lugar. Nós nos encontramos em Xangai uma vez, isso aconteceu em 1823. Naquela época, você era um tímido jovem mercador com o desejo de viajar a um distante país que acabava de conquistar a independência.

— Uma vida passada talvez? — por dentro algo parecia em ponto de ebulição, algumas imagens rodopiaram por sua mente ao ouvir falar em Xangai. Começou a sentir ansiedade e medo.

— Não, foi nesta mesmo, você realmente parece não lembrar. Todavia não estou enganado sobre ti, tu que fostes Lao Hsen e agora és Lucy. 

— Acho que o senhor está brincado comigo ou exagerando nas figuras de linguagem — Lucy levantou-se e encarou a grama verde. Sentindo-se angustiada, ergueu os olhos para as cerejeiras e voltou-os ao velho novamente.

— No seu íntimo você sabe que não, Lucy — com o olhar sério, ele encarou os olhos escuros da tímida mulher.

— O senhor não sabe nada de mim — ela coçou a cicatriz por baixo do cabelo, gesto que não passou despercebido. Ele pareceu finalmente ter encontrado a solução. Enfiou a mão no bolso interno do paletó e puxou um caixinha ornamental coberta por uma tampa de vidro e que exibia diversas pílulas de cores diferentes.

— Sinto muito, não pretendia ser impertinente, contudo agora compreendo sua situação, posso te oferecer ajuda. Há muito tempo tenho sido um alquimista, sintetizei diversas pílulas nesta era, por acaso as trouxe comigo, veja!

Lucy observou com fascínio a caixa com a tampa transparente. Huang a abriu delicadamente.

— Se você tomar esta pílula roxa, lembrará de qualquer coisa que tenha esquecido e reviverá antigas memórias. Eu te ofereço como prova de minha sinceridade, não gosto que pensem que sou um caduco qualquer. 

Receosamente, mas tomada de fascínio, ela aceitou a pílula e a guardou no bolso da calça jeans.

— Uma pílula dessas poderia salvar aqueles que sofrem de Alzheimer. Se isso for verdade, poderia fazer muito dinheiro — gracejou ironicamente aquela que poderia ter sido Lao.

O velho baixou os olhos e gargalhou.

— Ah, pobre Lao, o que te fez essa nova forma e os anos? Já está pensando como um ocidental. Não vejo serventia em curar a mente de homens e mulheres que se debilitaram com os anos. Recordariam apenas de seus desejos, não compreenderiam e nunca compreenderão a beleza da sanidade. Vejo que duvidas de mim, mas sei que irá experimentar a pílula. Após faze-lo, venha aqui amanhã neste banco, neste mesmo horário, eu te darei o abraço que tu irás precisar.

Lucy partiu de volta para casa. Não sabia dizer o porquê, contudo não jogou a pílula fora. 

A nenê brincava graciosamente, Celso a observava com fervor e viu a mulher chegar abatida, cumprimentaram-se com um beijo, ela aproveitou e foi para o quarto do casal, disse estar cansada e realmente estava. Decidiu que ia dormir um pouco.

Pensou em tomar a pílula, riu e se achou louca, no entanto algo dentro de si pedia por aquilo. E se fosse veneno? Se o velho fosse doido? E se... Tomasse e lembrasse do que aconteceu no dia da cicatriz? Aquele era o mistério de sua vida, resolvê-lo talvez trouxesse alguma paz. Sem pestanejar, ela ingeriu a pílula. Lentamente, tudo começou a escurecer e Lucy sentiu que caia cada vez mais dentro de si.

Ao retornar da escuridão, olhou para suas mãos. Viu que tinha uma pele de tom cinzento, dedos esguios sem unhas, nem digitais. Ficou amedrontada e olhou ao redor. Apesar do escuro, via com perfeição, parecia estar dentro de uma caverna. Havia por ali acomodações, restos de uma fogueira, uma cama improvisada feita com sacas de arroz preenchidas com serragem, roupas penduradas em uma espécie de cabideiro. 



Ao sair, percebeu que estava numa montanha, onde quase no topo havia uma caverna. Fazia muito frio, ela retornou para a caverna, apanhou um grosso casaco feito de pele no cabideiro e voltou para observar o mundo dali. Ventava forte. Tudo aquilo era tão familiar, tão real! Observava as plantações de arroz vibrarem com o sopro do vento do alto de uma montanha chinesa. 

Talvez a droga sintetizada fosse algo como a ahayuasca usada pelos indígenas brasileiros. Lembrou-se, dentro daquela lembrança, que uma vez havia lido uma reportagem sobre viagens astrais causadas pela ingestão do chá da ervas e se a pílula funcionava do mesmo jeito, bastava pensar no nome pelo qual o velho dizia conhece-la: Lao Hsen.

No mesmo instante a paisagem mudou. Observou as mãos novamente e agora tinham o aspecto firme e calejado de mãos masculinas e trabalhadoras do campo. Ao redor, haviam centenas de chineses fazendo a colheita de papoulas. O ano em questão era 1822.

— Vamos logo com isso, rapaz, os compradores estrangeiros esperam por essas papoulas — Lucy (ou Lao) ouviu e pode compreender perfeitamente o chinês tradicional. Tomada de espanto se prestou a colher cada vez mais. Ouviu alguém sussurrar:

— Desconfio desse rapaz Lao Hsen. Li Shao Alun contou-me suspeitas sobre sua natureza — Ao voltar seus olhos para o mexeriqueiro, não conseguiu descobrir de quem se tratava. 

Após terminar a colheita, seguiu com os outros para receber o pagamento em quantidades de arroz, pegou sua quantia e sentiu-se encarado por diversos olhares. Ignorou-os, pois Lao apenas pensava naquele nome: Li Shao Alun. 

Novamente um turbilhão mental o arrancou do lugar onde estava e o jogou em um novo, dentro de uma cabana, onde horrorizada e nua, Li Shao Alun contemplava a real natureza de Lao sem seu engodo aparentemente humano. O rapaz observou a moça chinesa chorar, tentando cobrir-se. Ele olhou suas mãos e as viu naquele mesmo aspecto da caverna: cinzas, esguias e sem unhas. Mal teve tempo de observar as vestes tradicionais jogadas ao chão, as cuias vazias com hashis usados perto dos forros e os tatames artesanais no chão.

— Saia daqui! Seu monstro! Seu monstro! — Lao cobriu os olhos que vertiam lágrimas e disparou a correr dali. Envergonhado, não percebera que estava sem roupas e ainda em sua forma original. Triste e de coração partido, só deu conta de sua condição após encontrar um bando  em seu caminho, bando este que o cercou.

— O que é isso? — os olhares de curiosidade e pena sobre sua figura foram como uma punhalada. Um dos homens retirara um punhal de suas vestes e apontou para ele, os outros fizeram o mesmo.

— Deve ser um yaoguai (2), Iruan. Nós estamos armados e somos maioria, não precisamos ter medo dele. 

— Vamos mata-lo? Ou vamos captura-lo e o vender no palácio do Governador da Província? — Iruan avançou com o punhal e fez um corte sobre a pele cinza, viu escorrer sangue vermelho. Lao estava mudo e inerte não conseguia fazer nada.

Os homens prestes a atacar foram impedidos de súbito. O “yaoguai” voltou seu olhar para seu suposto salvador e pôde entender: era Huang, o velho das cerejeiras com aparência mais jovem.

Sem cerimônia alguma, o homem de vestes pomposas puxou Iruan pelo punho e com a mão que estava livre, nua, com um golpe quebrou-lhe o pescoço, jogando-o ao chão com desfaçatez. O restante do grupo, ao ver tal ato, sequer ofereceu resistência, foram sumariamente destroçados pelas mãos de Huang.

— Talvez eu seja um yaoguai, não você. Creio que esteja bem. Vamos, vista essas roupas e assuma uma forma menos espalhafatosa.

Lao, então, se apresentou ao jovem de olhar furioso. A lembrança que veio à tona logo depois foi a despedida de Huang em um porto. Lao estava em um navio que iria rumo às Américas. Ele agora era Li Hu Yan e observou com tristeza, de longe, Li Shao Alun receber um jovem a quem fora prometida.

Temendo perder-se em tantas lembranças Lucy concentrou no dia da cicatriz e logo foi dragada para aquele acontecimento.

Durante essa retomada de lembranças, o corpo inerte de Lucy estava em lágrimas, pois ela viu a si mesma ao longe numa estrada a pedalar uma bicicleta na chuva. Viu a garota logo atolar-se no lamaçal. Por conseguinte, Lucy olhou suas próprias mãos e viu que haviam diminuído, tinha aspecto jovem, no entanto eram as mãos de um adolescente, de um garoto. Notou à distância a garota levantar-se e tentar tirar a bicicleta do atoleiro.



A garota estava num trecho não asfaltado da BR-459 em Lorena, enquanto ele, o misterioso ser sem nome, observava por detrás de algumas árvores seu suplício. Ele se lembrou, então, de alguém que não via literalmente há séculos: Li Shao Alun, seu amor perdido. Assim, rompendo sua solidão desigual, decidiu ir ao socorro da garota.

— Quem é você? Meu nome é Lucy, obrigada por me ajudar — ao apertar-lhe a mão o ser sentiu uma tremenda ternura. 

— Me chamo João Paulo, vivo nesta mata aqui ao lado, numa cabana que fiz. Por que está aqui sozinha? Venha se abrigar, será minha convidada.

Lucy, confiante, seguiu João Paulo até uma choupana, enquanto ele levava sua bicicleta. Contou a ele que fugira de casa após uma terrível briga com a mãe, perguntou de seus pais ao que João contou ser órfão e que vagava pelas cidades trabalhando, conseguindo algum dinheiro.

Dentro da choupana, Lucy observou os poucos móveis que haviam sido feitos pelo garoto, pareciam obras de um velho marceneiro, havia uma despensa com frutas e arroz conservados em embrulhos especiais.

— Desculpe por me intrometer, mas você deveria voltar para casa, seus pais devem estar preocupados — Lucy achou que aquele garoto parecia mais um adulto na verdade, devido à sua forma de falar.

— Com certeza estão, tenho mania de fugir quando estou muito nervosa, sou uma idiota mesmo!

João tinha uma habilidade mental muito forte e conseguia ver através dos olhos da garota muitos acontecimentos de sua vida, porém preferiu não fazer mais isso, ficaram então conversando por horas esperando a tempestade passar.

Contudo a tempestade não passou. 

A porta da choupana foi arrombada por 6 homens armados que renderam o garoto marceneiro e a fugitiva.

— Seguinte, precisamos nos esconder e se por acaso a polícia nos achar, vocês são nossos reféns. Então, garoto, bico calado ou vamos arregaçar essa menininha aí! — ameaçou um dos homens.

Lucy começou a chorar, até um dos homens aproximar-se dela e a observar de cima a baixo.

— Quantos anos têm? Uns 14, né? — ele retirou do bolso uma faca. — Heitor, Joca e Marcão, levem o moleque lá pra fora. Eu, Jorge e Maurão vamos desembrulhar nosso passatempo. 

— Não! — Lucy berrou e foi acuada pelos três, enquanto o amigo foi arrastado pelos outros para fora.

— Não se engane, garotinho, nós vamos nos divertir com você também! — Heitor e Joca o encostaram na parede e o forçaram a virar-se de costas. 

Naquele momento, João pensou em Lucy e por consequência lembrou de Alun, desesperando-se. Não iria deixar que aqueles marginais fizessem algo a ela, nem tampouco a si. Enquanto tentavam arrancar sua camisa, após muito se concentrar, viu sua pele tornar-se cinza através dos braços estendidos que os bandidos tentavam imobilizar. Com uma força descomunal, ele jogou Joca ao chão e ao virar-se para os demais bandidos, estes contemplaram sua face cheia de terror. 

O garoto havia virado uma coisa, sabe-se Deus lá o que, uma criatura magra, cuja face tinha os olhos pequenos que mais pareciam olhos de uma raposa, uma enorme boca cheia de dentes pontudos e uniforme, nariz fino e grande, além de orelhas élficas. Aquela criatura, sem piedade alguma, de seus dedos finos fez brotar garras e rapidamente retalhou os três homens deixando braços e pescoços decepados no chão. 

Sem vacilar, a criatura adentrou à casa e surpreendeu Lucy que tentava fugir em vão dos jogos doentios dos fugitivos e estupradores. Parecia não ter sofrido nenhum abuso, talvez estivessem a tortura-la mentalmente primeiro. 

João grudou na parede e como se fosse um lagarto deslizou por ali até rapidamente chegar a Jorge e Maurão. Após descer e pousar num golpe certeiro, perfurou com as garras o pulmão dos dois. Só restava o homem com a faca.

Desesperado, o homem puxou Lucy e ameaçou cortar a garganta dela; a criatura, sem saber o que fazer, ficou inerte a observar com seus olhos de raposa os movimentos do homem ao arrastar a menina para fora do barraco destruído.

— Meu Deus! Não deixa o Diabo me levar, não! Vamos garota! Você será meu escudo! — porém foi inevitável. A criatura escalou o barraco e, após saltar do telhado, surpreendeu o homem em sua tentativa de fuga. Ambos rolaram pelo chão, enquanto Lucy caía berrando. João olhou por um momento para a garota e viu um talho em seu pescoço. Logo, sem piedade alguma, subjugou o homem.

— Não me mata, por favor, não me mata! Vou virar homem direito! Eu prometo! — a criatura emitiu um sibilo e em seguida berrou. Com as garras, rasgou as calças do homem, arrancando o membro que pretendia usar com tamanha vilania contra a garota.

João só se deu conta de sua selvageria após largar o homem agonizando, tentando alcançar o membro amputado, e ir tentar ajudar Lucy que sangrava desesperadamente.

— Obrigada, eles não conseguiram, eles não conseguiram... Como fui idiota, agora meus pais vão ficar sem mim... merda... — Lucy verteu uma lágrima de despedida.

— Não fale, por favor, não fale, apenas olhe para mim — João a abraçou enquanto ainda ouvia o homem agonizar e chorou. 

Logo após, uma garota idêntica a Lucy voltava para casa. A criatura que fora Lao, Hu e João agora era Lucy e assim seria até sua morte, mas seria por completo. Antes de chegar à casa dela, jogou-se de cabeça contra uma pedra e seu corpo desfalecido ali ficou, sendo encontrado pelos pais da garota, preocupadíssimos e aliviados.

Após voltar de seu mergulho nas lembranças, Lucy sentiu um gosto amargo na boca. No dia seguinte, pediu a uma amiga que ficasse com a nenê e no mesmo horário foi encontrar Huang diante das cerejeiras.

Ambos se olharam e Huang abriu os braços esperando o abraço dela para confortá-la.



— Meu Deus, Huang, o que eu sou? — ela chorava feito uma criança dentro daquele abraço.

— Os alemães chamariam de Doppelganger, um duplo, mas talvez você seja o próximo passo na escala da evolução humana, um ser que pode escolher sua aparência, seu sexo e que pode viver por muito tempo.

Lucy sentou-se e lentamente foi secando as lágrimas.

— O que aconteceu com Alun? — Lucy sentiu-se Lao naquele momento.
Huang riu.

— Alun, mas que paixão foi aquela, hein! De fato, o primeiro amor é único! No fim, ela viveu até a velhice junto daquele rapaz o prometido que vistes no porto. — explicou o chinês.

Lucy observou as cerejeiras.

— Que ironia, em busca de respostas pela minha vida, atraí mais perguntas e me perdi. O que farei agora? — ela tampou os olhos com as costas das mãos e se curvou até os joelhos.

— Faça o que tu quiseres, ao menos sabes o que és — Huang a confortou e sentou-se ao lado dela.

— Continuarei sendo Lucy e cuidarei da minha filha. 

Huang mostrou uma expressão de desalento:

— Crianças frutos de relacionamentos entre Duplos e humanos não vivem muito tempo, lamento dizer.

A mulher ouviu, mas preferiu não comentar.

— Ainda posso mudar de forma? — curiosamente aquilo lhe veio à mente.

— Você sempre pôde, é só querer e da maneira que quiser — Huang se despediu e disse que estaria ali no dia seguinte.

Lucy voltou para casa e, ao chegar no quarto, embalou a filha nos braços e chorou. Observou sua imagem no espelho tão pálida e chorosa, perdeu-se em pensamentos e não percebeu Celso a entrar no quarto. 

Em silêncio, ele observava a esposa, mas antes que pudesse fazer alguma coisa, a viu arrancar a pele do rosto e revelar uma face cinza, de nariz comprido e fino, além de olhos pequenos e boca enorme.

— Oh, meu Deus! — Celso berrou e assustou Lucy. Ao olhar para o marido, ela também gritou, sem saber o que dizer. Em um ímpeto louco, ele pensou em alcançar a filha dos braços da criatura que via, porém desistiu, afastando-se mais e mais. A esposa colocou a menina no berço e tentou reconstruir a face que arrancara, Celso tomado de horror jogou-se da janela do quarto no 13º andar.

Vizinhos e curiosos se aglomeraram em torno do corpo arrebentado, envolto em uma poça de sangue. A polícia e a esposa alegaram suicídio diante de dificuldades financeiras.

Lucy, Lao, Hu, João Paulo, o Doppleganger na manhã seguinte tomou sua filha no colo e  foi ao encontro de Huang diante das cerejeiras.

— Prometo salvar a criança, creio que consiga — o velho sábio acalentou a menina no colo e com ela brincou. — E tu o que farás?

Lucy sorriu, afastando por um instante todo o sofrimento de sua vida sempre solitária.

— Eu serei a mãe, o pai, serei eu mesma e também uma cerejeira. Serei tudo.

Huang a fitou.

— Por quê uma cerejeira também? — ao questionar notou que o vento levara embora mais pétalas rosas.

— Porque assim nunca mais estarei só. 

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[1] Trecho da música "Lucy in the sky with diamonds", The Beatles.

[2] Um demônio chinês. Diferente da cultura ocidental não necessariamente um demônio (ou se você preferir, entidades celestiais caídas) eram malevolentes por natureza, alguns yaoguais eram manifestações de espíritos de animais, como raposas, para quem se amarra em mangá ou anime, yaoguai em japonês são os youkais. 😊


Caros leitores, agradeço novamente sua passagem pelo portal!

Lucy, tomara que você tenha apreciado o conto! Mais uma vez, gratidão pela participação!

A quem esteve aqui pela primeira vez, vocês podem conferir aqui todos os textos da coluna No Umbral já publicados no blog >> Acesse aqui! Em breve, os textos estarão no Wattpad também!

Até a vista e assim fecha-se a passagem para o Umbral!




Orfeu Brocco nasceu em Uberlândia - MG em 1988, casado, atualmente vive em São Paulo. Como autor, suas obras lançadas até o momento são; "Criações Sombrias" (2014) e "Jardins Dolorosos da Babilônia (ou versos ácidos para meu amor, se você preferir)" (2014), além do livro infantil "Hélio e o menino gota" (2015), lançado pela Editora Miranda. Atualmente, desenvolve mais livros e HQs junto dos amigos.

CONTATO: broccoluiz@bol.com.br




23 comentários:

  1. OMG...
    Orfeu que lindo, eu amei.
    Triste, trágico e lindo demais.
    Obrigada, de coração.
    Amei ser a personagem e obrigada por não ter sido de terror ahahahaha.
    Ficou maravilhoso, estou sem palavras.
    Parabéns por sua escrita, foi delicada e intensa, trazendo os vários "eus" dentro de mim mesma, afinal somos todos assim.
    Beijokas

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    1. Lucy fico honrado por ter conseguido te sensibilizar , gratidão !

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  2. Parabéns a ambos! Não posso dar muita opinião sobre seus contos, já que sou praticamente presidente do fã-clube, porém ficou mesmo um conto muito lindo, com um final triste, mas bem ao estilo da Lucy. Beijo p os 2!

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    1. Gratidão, Nuccia!
      Ter conseguido atingir um pouco daquilo que a Lucy gosta foi algo maravilhoso!
      Beijão!

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  3. Belo narrativa, muito bonita e gostosa. Maaas, sendo um pouquinho chato. A parte que a Lucy toma a pílula que ela recebeu de um estranho explodiu minha suspensão de descrença. Nem em Matrix, que parece ter sido a inspiração dessa cena, foi assim tão simples, houve uma preparação antes. Mesmo gostando da narrativa, o conto me perdeu nessa parte

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    1. Olá Joe ! Espero que estejas bem , obrigado por suas considerações tão bacanas e também por sua crítica bem construída, você acertou em cheio sobre a inspiração da cena da pílula!
      Muito obrigado pela leitura, espero no próximo conto não perdê-lo de jeito algum!
      Abraço!

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  4. vou deixar meu registro aqui, afinal de contas já dei uma "bisoiada" em quase todas as obras de Orfeu Brocco e curti à bessa. sucesso!!

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    1. Olá, gratidão por dar aquela "bisoiada" marota em minhas estórias !
      Fico feliz que tenha curtido, sucesso para você também!

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  5. Oiii Nu tudo bem?
    Que conto de tirar o fôlego menina, fiquei encantada e ao mesmo tempo a refletir sobre o ocorrido, todo o cenário de certa forma me atentou a querer conhecer mais a escrita e viajar por entre esse caminho, com toda certeza vou indicar para algumas amigas.
    Beijinhos

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    1. Olá, cara dama de Ávalon !Bom tê-la por aqui novamente nestas paragens sombrias!
      Encanta-me saber que conseguiu viajar pela estória e que te trouxe muitas emoções !
      Muito obrigado pelas indicações e por sua leitura, além do comentário maravilhoso!
      Beijos !

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  6. Oi Orfeu! Amo essa coluna, só textos incríveis! E que conto foi esse? Te confesso que fiquei aflita, tantas vidas em uma só criatura. Esses momentos finais foram angustiantes! Você conseguiu passar bem as emoções dos personagens, gostei bastante da caracterização dos ambientes, deu para imaginar perfeitamente. Parabéns! Abraços.

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    1. Olá Suzana ! Muito obrigado por ler e pelo seu comentário tão carinhoso.
      Um grande beijo!

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  7. Oiii! É muito legal seus contos, lembro do outro que li e curia bastante. Você escreve de uma forma que nos sentimos dentro da historia. Adoro isso!
    Fiquei aflita lendo mas foi bom haha. Parabéns!
    Abraços!

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    1. Oi Carine que bom vê-la novamente por aqui, muito obrigado pelos comentários sobre minha escrita e minhas estórias!
      Adoro saber que consegui faze-la se desprender um pouco da realidade!
      Grande beijo!

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  8. Olá Orfeu, tudo bem?

    Este é o meu primeiro contato com a sua escrita, mas já posso me declarar uma admiradora?!
    Você escreve muito bem e consegue passar as emoções na dose para o leitor que apenas vai entrando cada vez mais fundo em sua história. A pegada do sombrio está na dose certa, impossível não gostar! Uma ótima sensação!

    Beijos!

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    1. Oi Alice, estou bem, obrigado, espero que você também esteja !
      Fico lisonjeado com o carinho de suas palavras e de seu comentário, é muito gratificante saber quando se consegue cativar uma pessoa!
      Espero você aqui mês que vem!
      Beijos!

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  9. Oie
    muito legal o conto, comecei a ler mas terminarei em outro momento, mesmo assim já estou ansiosa hahaha muito boa sua narrativa, espero que escreva mais

    beijos
    http://realityofbooks.blogspot.com.br/

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    1. Oi Catharina, todo mês tem um conto diferente por aqui! Que bom que está curtindo o conto, fico muito feliz, obrigado por dedicar seu tempo à leitura!
      Beijos !

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  10. Sou suspeita pra falar pois me tornei sua fã lendo apenas um conto kkk
    adoro sua narrativa como já disse, você consegue prender a atenção para que a gente leia até o final!
    Continue escrevendo, e obrigada por me mandar me senti lisonjeada, me envie sempre!
    Beijos <3

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    1. OI Jhe !É um prazer tê-la por aqui novamente, obrigado pelo carinho!
      Sempre que houver um lançamento eu te avisarei, pode deixar :)
      Beijos!

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  11. Nossa, que conto enorme.
    Lamento por só uma pessoa ter participado da campanha, a ideia é boa. O conto, apesar de grande para o perfil da postagem, ficou legal. Parabéns ao autor pelo texto e sucesso.

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    1. Oi Lilian tudo bem ? Mesmo só uma pessoa tendo participado valeu a pena, quem sabe na próxima participem mais!
      Realmente este está um pouco maior que os outros, as vezes a história não para de acontecer!
      Obrigado por ter acompanhado essa aventura e sucesso para você também!

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  12. Oie tudo bem? Parabéns pelo talento, ótima narrativa, continue escrevendo mais contos!

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